Autoria:Celso Ferrarezi Jr.
Credenciais:Universidade Federal de Alfenas, MG
Alfenas, MG
Essa nossa língua que não para quieta!
Você já passou por alguma experiência em que você disse uma coisa para uma pessoa e foi tudo bem, mas quando disse a mesma coisa para outra pessoa, ela ficou brava ou ofendida? Estranho, não é? Por que isso acontece? Vamos ver aqui.
A Ciência que estuda os sentidos que conseguimos produzir na linguagem é a Semântica. A Semântica é uma parte de uma Ciência maior chamada Linguística. A Linguística estuda tudo sobre todas as línguas humanas; a Semântica estuda como os sentidos se formam nessas línguas e como os utilizamos para nos comunicar. Sim, porque nos comunicamos com sentidos, usando sons (ou imagens) para isso. Mas, são os sentidos que carregam o conteúdo da comunicação, ou seja, os sentidos é que comunicam.
Pois bem: a Semântica já descobriu por que as palavras mudam de sentido de uma pessoa para outra, de uma situação para outra. É que as palavras – e as línguas – não possuem um sentido inerente, ou seja, elas não têm sentido antes de ser usadas. O que acontece é que os sentidos são construídos quando usamos nossa linguagem, e dependem de quatro coisas principais para isso:
- os sentidos em que estamos mais acostumados a usar as palavras em determinadas situações. Esses sentidos são chamados de sentidos costumeiros e dão uma primeira pista do sentido que queremos construir. Por exemplo, quando estamos numa construção, falando de material de construção, e pedimos para o servente levar o ferro para o pedreiro, é mais comum que “levar ferro” signifique “carregar o vergalhão”. Já se estivermos falando de futebol, é mais comum que, ao dizer que o time “levou ferro” na partida, isso signifique que teve uma derrota vergonhosa. Seria muito estranho imaginar que o time entrou no campo para jogar carregando um monte de vergalhões de ferro…;
- ocontexto em que usamos as palavras – o contextoé o texto em si, ou seja, a estrutura linguística que acompanha a palavra para a qual estamos construindo um sentido. Por exemplo, quando usamos a palavra “flor” na frase “O jardim de minha mãe tem lindas flores azuis”, é muito mais provável que estejamos falando de plantas. É que as palavras “jardim”, “lindas” e “azuis”, nos remetem para esse sentido de flor,ou seja, elas funcionam juntas, interligadas não apenas na estrutura sintática, mas, também, nos sentidos. Por outro lado, se eu disser que o “Tiro de escopeta que o João levou abriu uma flor no peito dele”. Eu não vou imaginar que nasceu uma planta no peito do João, mas que se abriu um buraco enorme, com bordas ressaltadas. É que as palavras “tiro”, “escopeta”, “abriu” e “peito” me levam a entender que não estamos mais falando de lindas flores azuis em um jardim, mas de algo bem mais feio…;
- o cenário que temos em mente ao usar a palavra – quando usamos as palavras, temos em nossa mente uma imagem complexa do que está acontecendo. Imaginamos com quem estamos falando, onde, por que razões, com que objetivos. Pensamos no que essa pessoa sabe, no tema que estamos abordando, no que achamos dela, no que ela acha de nós, enfim, em uma infinidade de coisas. Essa imagem complexa que formamos na cabeça é o cenário em que as palavras funcionam. Se mudamos o cenário em nossa mente, é claro que mudamos o sentido das palavras. Pense nessa situação: uma pessoa chega perto de amigos que está conversando em uma roda e escuta alguém falar de cachorro. Imediatamente, ela cria um cenário na mente em que cachorro é o animal, o pet. Mas, a conversa continua e as coisas que estão sendo ditas não fazem muito sentido para ela: a palavra cachorro, significando o animal, não funciona ali. Então, ela pergunta – “Escuta: de que “cachorro” vocês estão falando?”. E alguém responde: “Do cunhado do Marcelo, que deu em cima da minha esposa!” Ah! Agora tudo fez sentido! Por quê? Porque, agora, o cenário que a pessoa tem na cabeça é a imagem complexa de um homem casado “dando em cima” de uma mulher casada também. Daí o “cachorro”… ou seja, quando estamos com um cenário na cabeça, as palavras terão um sentido; quando mudamos o cenário, o sentido muda;
- finalmente, precisamos levar em conta o evento -o evento é o que está acontecendo no mundo real. É a partir do que estamos vendo no evento e do que sabemos sobre o mundo real que conseguimos montar o cenário em nossa mente. Se entendemos o evento de forma errada, é claro que vamos montar um cenário errado na mente. Acho que você conhece alguma história assim. A pessoa viu uma coisa, mas pensou que era outra. A partir desse momento, começou a entender tudo errado…
Então, para construir o sentido de uma simples palavra, nós levamos em conta a própria palavra na forma mais comum em que a usamos, o contexto, o cenário e o evento. Qualquer mudançazinha em qualquer um desses elemento e o sentido já vai mudar. É por isso que a mesma palavra pode ter um significado para uma pessoa e outro para outra pessoa, ou um significado em uma situação e outro em outra situação. É assim mesmo: as línguas que falamos não param quietas, mudando de sentido de segundo em segundo. E isso é maravilhoso! É por isso que nossa linguagem é tão complexa, tão rica e tão linda! Mas, também, é por isso que temos que tomar cuidado quando falamos ou escrevemos, pois os mal-entendidos podem estar em qualquer detalhe. E, aí, pode dar “treta”…
Referências
FERRAREZI Jr., Celso. Introdução à semântica de contextos e cenários: de la langue à la vie. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2010.
FERRAREZI Jr., Celso. Metodologia de pesquisa em semântica de contextos e cenários: princípios e aspectos metodológicos. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2018.
FERRAREZI Jr., Celso. Ser Humano: ser estético, ser linguístico – ou aconstrução da visão de mundo na semântica de contextos e cenários. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2023.